Sua Vida
Seguindo os passos do ‘SERVO DO BUDDHA’
De um garoto comum a um monge notável, Buddhadasa Bhikkhu deixou um legado de ensinamentos, escritos e um santuário para que outros pudessem continuar no caminho do dharma.
Escrito por Karnjariya Sukrung
Bangkok Post OUTLOOK – Terça-feira 07 Junho 2005
Em 1955 Buddhadasa Bhikkhu, fundador de Suan Mokkh (Jardim da Libertação), fez uma peregrinação de três meses pela Índia, o lugar de nascimento do Buddha. Por toda sua vida, o monge reformista manteve seu voto de seguir nas pegadas de seu professor. Mas este caminho não estava sintonizado com o tradicional gesto de um wai ou com as oferendas de velas ou incensos. Sua jornada abarcava um mais profundo entendimento e prática dos verdadeiros ensinamentos, ou dharma, do Senhor Buddha.
Uma editora agora organiza uma série de viagens gratuitas para os jovens de toda a Thailândia a fim de aprenderem sobre a vida e obra do velho monge. O tour guiado de dois dias e uma noite à província de Surat Thani province inclui uma visita aos lugares em que o monge cresceu, estudou e praticou o dharma, assim como seu local de cremação. Tudo isso para comemorar o centenário de nascimento de Buddhadasa no próximo ano.
O muito respeitado monge deixou este mundo, mas seu legado continua a inspirar.
“Esta é a forma como Buddhadasa nunca morrerá. Ele continuará a viver e a nos influenciar através de sua vida e obra”, disse Chonrangsee Chalermchaikit, gerente diretor da Sukhapab Jai, a editora de vinte e três anos que introduziu muitos dos livros de Buddhadasa ao público.
Durante seus 67 anos de manto monástico, o monge sênior escreveu numerosos livro, proferiu centenas de palestras e invocou o verdadeiro espírito do dharma, um espírito não imbuído de superstição, ritual sem sentido ou materialismo.
Tudo isso foi a forma do monge expressar sua gratidão ao Buddha, a quem ele tinha em alta consideração. Seu nome escolhido, Buddhadasa, literalmente significa “um servo do Buddha”. De acordo com o velho monge, tomar refúgio no Buddha, Dharma, e Sangha não significa idolatrar o Buddha, mas tentar viver de acordo com os ensinamentos do Buddha.
“Dharma é a religião”; escreveu o monge em 1965 após completar em seu mosteiro nas florestas um projeto de esculturas buddhistas no estilo indiano. “As pessoas atualmente, no entanto, tornaram-se apegadas à visão do Buddha como um deus, ao invés de vê-lo como um ser humano que atingiu a iluminação e tinha grande compaixão pelos outros. Elas não estão conscientes de que o Buddha ensina que qualquer um pode seguir seu caminho e encontrar a saída em relação ao sofrimento por si mesmas”
Os organizadores das viagens a Suan Mokkh adotaram sua atitude em relação ao estudo e exploração da vida do antigo monge.
“Não queremos idolatrar Buddhadasa Bhikkhu”, disse Chonrangsee. “Focamos no dharma e como ele se reflete no modo de vida, pensamento e trabalho do monge. Esperamos que sua vida ajude a inspirar as pessoas, especialmente a geração mais jovem. Buddhadasa frequentemente dizia:’Se haverá ou não paz no mundo, isso dependerá da moralidade dos jovens’
PRIMEIROS ANOS
O distrito de Chaiya em Surat Thani já foi a região central do Buddhismo, quando este apareceu pela primeira vez no Reino do Siam. Uma estrada de duas vias agora leva à pequena comunidade e à loja de madeira de dois andares: o local de nascimento do pequeno garoto que mais tarde seria conhecido como Buddhadasa.
Em 27 de maio de 1906, Ngerm Panich nasceu, o filho mais velho dentre três crianças de um comerciante chinês chamado Sieng, o qual, juntamente com sua esposa thailandesa, Kluen, dirigia uma pequena mercearia. Muito mudou desde então – a casa foi renovada e se parece nova – mas algumas de suas estruturas originais ainda são evidentes.
Metta Panich, sobrinho de Buddhadasa, recorda histórias que aprendeu sobre a vida no vilarejo um século atrás.
“Naqueles dias, o templos tinham um papel dominante na vida comunitária”, ele disse. “Toda casa tinha uma mesa preparada para a comida, pronta para ser oferecida todas as manhãs aos monges. Havia seis templos na região e os monges costumavam chegar para uma visita e conversas. Uma vez por mês, as pessoas se dirigiam para um templo próximo e ouviam sermões e orações”.
Quando os irmãos Panich cresceram, um de seus hábitos em comum era iniciar discussões de dharma na vizinhança, e assim abriram sua casa para funcionar como uma “biblioteca pública”.
“A vida, então, era pacífica e bem despreocupada. Não havia necessidade de fechar as portas ou janelas. Os moradores da vila não precisavam se preocupar com ladrões. Eles se conheciam bem, como parentes”, Metta contou.
A mãe de Ngerm foi uma figura influente em sua vida. Ensinou o jovem garoto sobre a responsabilidade e a arte da frugalidade. Mais tarde ela se tornou uma das principais sustentadoras da fundação de Suan Mokkh nos anos 30.
Embora a família fosse bem de vida, Ngerm aprendeu como ser um gastador sábio. O jovem ganhava apenas um satang (100 satangs é o equivalente a um baht – NT: aproximadamente 40 bahts equivalem a um dólar americano em 2006) como sua ajuda escolar diária. Ele comprava kanom jeen (macarrão de arroz) e nam ya (sopa apimentada) para o almoço, salpicada de vegetais ou pétalas de flores que havia coletado na lagoa próxima.
“Quando tinha nove anos, ele pediu à sua mãe por uma bicicleta, mas ela respondeu: ‘Não é a obrigação da mãe comprar uma bicicleta para seu filho. Se você a quer, você deve ganhá-la por si mesmo”, disse Poj Youngpholkan, um biógrafo de Buddhadasa Bhikkhu.
“Por seis meses o jovem teve que costurar roupas e poupar a fim de comprar o que desejava”
Desperdiçar coisas como água e combustível era desencorajado pela matriarca.
“Sua mãe ensinou seus filhos a tirar o máximo uso de todas as coisas”, disse Poj. “E este hábito permaneceu com Buddhadasa por toda sua vida. Nada era jogado fora, a menos que houvesse sido aproveitado completamente. Por exemplo, ele escrevia poemas de dharma nas costas de velhos calendários”.
Ao crescer, Ngerm era um garoto regular, apesar de algumas vezes travesso. Ngerm frequentemente apanhava de sua mãe por ter se metido em brigas ou pregado peças em seus dois irmãos. E como para a maioria dos garotos de sua idade, ele tinha medo de fantasmas.
“Um dia, o gado havia se aventurado num cemitério”, disse Poj. “Já estava anoitecendo. Ele estava com muito medo mas o pensamento veio: ‘Tenho medo de fantasmas, mas olhe, aquele gado está lá comendo grama’. O medo se dissipou e Buddhadasa disse ter agradecido ao gado por ter ensinado a ele uma lição valiosa”.
A VIDA NA ESCOLA
Da velha casa de Buddhadasa, num breve trajeto de carro, encontramos a construção deserta que antes era a escola do Wat Bhoditharam, chamada pelos monges de “universidade”. Foi aqui que o jovem Ngerm aprendeu como raspar de si o egoísmo. Ele se apelidava como “o homem do mundo” – como um garoto de templo ele tinha que cuidar de tudo do alvorecer até a hora de ir para a cama. Com seus colegas de escola, ele ajudava a alimentar os gatos, galinhas, cães e porcos abandonados; a manter as áreas do templo limpas e organizadas; a ajudar crescer as plantas comestíveis para dar aos moradores do vilarejo.
Na escola, o jovem Ngerm não foi um aluno excepcional Em um dos relatórios de final de ano, seu professor disse: “1. Ele é diligente e termina os deveres de forma rápida e limpa; 2. Ainda não foi encontrado provocando seus amigos, nem foi forçado a atender a escola; 3. Ele tem boa memória e gosta de fazer as coisas por si mesmo; 4. Ele é inteligente como qualquer um”.
Quando tinha 16 anos, o pai de Ngerm faleceu. Isto significou que o adolescente teve que sair da escola a fim de dirigir a mercearia da família. Além disso, o jovem tinha que fazer viagens noturnas de barco até a cidade de Surat Thani a fim de comprar mercadorias, cuidar das tarefas da casa, de sua mãe e de seus irmãos. Apesar das pesadas tarefas de suas novas responsabilidades, ele considerou tais anos como “cheios de diversão”.
Aos 20, Ngerm foi ordenado monge, em parte para seguir a tradição da época e em parte para seguir os desejos de sua mãe. Seu nome de ordenção foi Inthapanyo (“o sábio”). Após três dias como monge, ele começou a quebrar algumas das “convenções”. Em vez de ler para as pessoas leigas, direto das escrituras, o jovem monge proferia palestras espontâneas, tentando tornar o dharma relevante em relação aos eventos diários. Seu estilo atraiu as pessoas do vilarejo e passou a ser convidado para dar sermões mais frequentemente.
Depois de ter completado o primeiro nível de exames nos estudos de dharma (nak-tham tri), ele começou a dar lições de dharma aos monges estudantes de um templo em Chaiya.
“Ele tinha um dom em digerir e explicar coisas difíceis. Utilizava de apoios e exemplos concretos para tornarclaros seus pontos. As pessoas amavam ouvi-lo. Dos 30 monges que ensinou, 29 passaram”, Poj contou.
A fim de avançar em sua educação no dharma, o monge seguiu para Bangkok, que ele acreditva ser a terra dos “Despertos”, pois que era o centro das escrituras e gurus. Entretanto, rapidamente se desiludiu devido à falta do compromisso com os ensinamentos buddhistas demonstrada por alguns monges, e sentiu-se um estranho entre eles.
“Buddhadasa Bhikkhu ficou infeliz em ver as práticas relaxadas de tantos monges em Bangkok. Eles almoçavam após o meio-dia, tinham contato físico com mulheres e engajavam-se em rituais supersticiosos. Lutavam por poder, títulos, decorações e riqueza.”
Entendiado e desencantado com Bangkok, o monge abandonou os exames e decidiu voltar para sua cidade natal. Com a ajuda de seu irmão e alguns monges amigos, buscou uma ermida solitária onde pudesse estudar e praticar o dharma. “… Persegui os caminhos do mundo desde o dia em que nasci. De agora em diante, não mais farei assim. … Direi adeus ao mundo e buscarei a pureza de araya [desperto] … para libertar minha mente do mundo”, Buddhadasa Bhikkhu escreveu.
O COMEÇO DO CAMINHO
Um monastério abandonado chamado Wat Trapangjik foi o local perfeito para o jovem monge começar um novo capítulo de sua vida. Uma densa floresta, sem pessoas ao redor, e animais como serpentes venenosas, ursos e pássaros selvagens.
“Na época do Buddha, tal como consta nas escrituras, o Buddha aconselhava seus discípulos a ir para a floresta e sentar-se sob as árvores em busca da verdade última”, Poj disse.
Isto foi exatamente o que fez Buddhadasa. Por três meses ele não recebeu visitantes, absteve-se de falar, comeu apenas uma refeição diária. Sua residência, ou kuti, era uma pequena cabana com um telhado ondulado.
O monge auto-ensinado leu e estudou muitas escrituras e livros em busca do caminho de se tornar “Desperto”. Durante este tempo, escreveu um livro intitulado Tam Roy Phra Arahant (Em Busca dos Despertos). Manteve também diários de suas observações durante o retiro solitário intensivo de três meses.
Foi em 1932 que se declarou servo do Buddha, ou “Buddhadasa”. Um pilar de pedra branca com sua declaração inscrita ali ainda repousa na floresta. O kuti, agora decaído, ainda está lá. A única coisa que mudou foi a floresta virgem.
“Este lugar foi um ponto de mutação para o jovem monge e inspirou a criação de Suan Mokkh”, disse Poj.
Este compromisso em construir um jardim santuário foi documentado em seu Calendário da Prática do Dharma em 1934: “Sacrificarei tudo e almejarei apenas a felicidade sublime de modo a compartilhá-la com outros”.
Por quase 12 anos, Wat Trapangjik foi o monastério onde Buddhadasa foi o único monge residente permanente. Muitos o chamavam de “monástico louco”. Entretanto, alguns amigos do dharma, tais como seu irmão e outros monges progressistas, faziam visitas ocasionais a fim de discutir os ensinamentos buddhistas com ele.
O MOSTEIRO DE FLORESTA SUAN MOKKH
Em “Dizendo Isto nos Anos do Crepúsculo”, Buddhadasa Bhikkhu contou em uma série de entrevistas dadas a Phra Pracha Prasanthammo: “Houve um tempo em que pensei em viver sozinho como um eremita, mas isto seria o fim de Suan Mokkh. Esta existência comunal, por outro lado, beneficiou muito mais pessoas.
Em 1943, com a ajuda de sua mãe, irmão e amigos, Buddhadasa mudou Suan Mokkh para sua localização atual. O mosteiro de floresta de 300-rai foi planejado para ser um santuário para o despertar das pessoas ao dharma.
Nos anos posteriores, o monge aventurou-se a criar três diferentes seções no mesmo local: uma para as mulheres, uma para os estrangeiros e a terceira para os monges.
A Natureza, para o monge, era o melhor professor de dharma. Assim, em Suan Mokkh, as árvores servem de paredes e pilares; seus ramos e folhas que propiciam sombra servem de telhado; a areia e as pedras servem de cadeiras.
“Buddha nasceu no chão, peregrinou a pé para ensinar o dharma, e morreu deitado sobre a terra. Eu o seguirei, mantendo sempre meu pé sobre o chão”, ele disse certa vez a pessoas que se ofereceram para pavimentar o solo arenoso em frente ao seu kuti, onde ele trabalhava e dava as boas-vindas aos visitantes.
O kuti do monge, que servia também como seu escritório e biblioteca, logo se tornará um museu. Metta, o sobrinho do monge, disse que as pessoas do templo planejam renovar todos os kutis para mostrar como ele vivia, que tipo de livros lia e como o prolífico monge-escritor trabalhava.
“O monge era auto-ensinado. Lia livros de muitos tipos. Lia sobre Cristianismo, Islã, filosofia e mais. Ele mantinha peixes, e lia livros sobre peixes”, disse Metta.
“Aprendia sobre tudo, mesmo sobre sua própria doença. Costumava dizer que a cada vez que ficava doente, ele aprendia mais e se tornava mais sábio”.
Alguns anos antes de falecer, Buddhadasa mudou-se para um novo kuti, originariamente planejado para ser um banheiro. “Ele disse que o banheiro era espaçoso e conveniente para moradia”, Metta explicou.
Buddhadasa não favorecia estruturas de concreto em vez da natureza, mas nos anos desde seu estabelecimento, Suan Mokkh cresceu regulamente com a adição de vários prédios para receber o número crescente de visitantes.
Uma velha estrutura de madeira conhecida como Sala Nang-ngarm (pavilhão da rainha da beleza) abriga três esqueletos: um bêbê, um homem e uma mulher que já havia sido rainha da beleza na Thailândia. O objetivo é lembrar os visitantes da impermanência da vida e estimulá-los a seguir a sugestão do monge: “pôr um fim em nosso sofrimento antes de morrer”.
Buddhadasa Bhikkhu queria também promover a arte no mosteiro. O Teatro de Entretenimento Espiritual abriga pinturas e esculturas que simbolizam o dharma. As paredes externas do teatro são decoradas com réplicas de esculturas antigas indianas em baixo-relevo representando a vida do Senhor Buddha, as quais o monge viu em sua viagem à Índia.
Mesmo no final de sua vida, Buddhadasa Bhikkhu usou sua morte como uma lição para o povo. Perto do Monte Buddha Thong, uma pequena colina dentro do complexo do mosteiro, está um pilar de pedra que serve como memorial da cremação do monge em 1993.
É impressionante ver a quantidade de trabalho e mérito que um monge “comum” realizou no período de uma vida. A Sala Dhammakot (Propagação do Hall de Dharma) do mosteiro mostra toda sua obra, livros, fitas, artigos e premiações, assim como suas cinzas, que estão localizadas embaixo de uma estátua do Buddha.
É impossível mergulhar completamente no legado de “viva de modo simples, almeje pelo mais supremo” dos 87 anos de Buddhadasa Bhikkhu em apenas um ou dois dias, mas a inspiração que compartilhou por meio de seus ensinamentos e da existência de Suan Mokkh podem, os organizadores acreditam, inspirar que mais pessoas sigam seu caminho. E isto, se conseguido, será mais que suficiente.
© 2005 Karnjariya Sukrung,
http://www.buddhadasa.org
© 2006 tradução de Ricardo Sasaki,
https://buddhadasa.nalanda.org.br