100 anos

BUDDHADASA BHIKKHU: 100 ANOS DE HISTÓRIA

por Vasana Chinvarakorn [Bangkok Post, 28 de maio de 2006]

O trabalho do monge que construiu Suan Mokkh – Thailândia.

O pó fino e branco-acinzentado manteve-se brevemente suspenso no ar antes de cair no refrescante córrego abaixo. Assim foram devolvidas as cinzas de Buddhadasa Bhikkhu ao abraço da mãe-natureza, como ele havia especificado em seu testamento.

Treze anos depois, o local mantém-se tão simples como sempre foi. Enterrada profundamente na selva, a área permanece sem qualquer sinal. Não há qualquer indicação, nenhuma marca ostentosa para assinalar que uma vez fora anfitriã de um evento histórico. Árvores continuam a crescer e a morrer, e no seu lugar novas mudas brotam. Elefantes selvagens e outras criaturas ainda vagam pelo Parque Nacional de Khao Sok, a origem do Rio Tapee que banha toda a província de Surat Thani.

Buddhadasa escolheu essa floresta inexplorada como um dos três locais onde suas cinzas seriam espalhadas. Os outros dois, Khao Prasong e as imediações do Parque Nacional Marinho Ang Thong em Koh Samui, também estão localizados próximos à costa meridional de Chaiya, sua cidade natal.

O que poderia estar se passando na mente deste monge quando ele fez o pedido, dois meses antes de sua morte? Sobre o que estariam pensando seus discípulos enquanto subiam as íngremes colinas, ou aventuravam-se pelo vasto oceano, para ofertar um último adeus ao seu professor, que escolheu chamar-se o “Servo do Buddha”? “Meu túmulo são as boas ações que fiz neste mundo ao propagar o dharma; meu cemitério são as ações corretas que empreendi para o benefício de meus semelhantes; gostaria de convidar a todos a seguirem a mesma regra: Que nossos túmulos sejam as boas ações que fizermos para o mundo; que nossos cemitérios sejam os ações corretas que empreendermos para o benefício dos seres humanos, nossos semelhantes”.

Com simples, mas inabalável convicção, Buddhadasa passou 67 anos sob o manto de um genuíno seguidor desta afirmação. Do nada ele construiu Suan Mokkh, o monastério de floresta agora renomado por seus retiros de meditação, tanto para os thailandeses quanto para os estrangeiros. Os seus numerosos trabalhos foram estudados, traduzidos e reimpressos, provavelmente mais do que os de qualquer outro escritor thailandês. Suas tentativas de diálogo inter-religioso foram louvadas como visionárias; sua advertência a respeito do perigo do materialismo, considerada previdente. E em sua repetida insistência a outros buddhistas para que sempre buscassem a essência de sua religião, Buddhadasa demonstrou ser da maior relevância para a sociedade atual.

Sem pretender qualquer proeza sobrenatural, o falecido monge tem sido incessantemente venerado por toda parte. Este ano verá um amplo círculo de atividades para celebrar o centenário de seu nascimento. O nome de Buddhadasa já consta na pequena lista da Unesco, de pessoas que fizeram contribuições duradouras para o mundo. Conferências estão acontecendo, mais livros, sobre e escritos por ele, estão sendo publicados, estátuas esculpidas, selos comemorativos emitidos e visitas aos lugares conhecidos por estarem relacionados ao monge reformista, estão sendo feitas.

Uma peregrinação como esta, entretanto, pode levar à percepção da transitoriedade da vida. A casa onde o pequeno Ngerm (o nome leigo de Buddhadasa) nasceu, há muito foi vendida e reconstruída. A casa na qual cresceu pertence agora a um parente distante, e só o piso superior ainda retém sua estrutura original de quase um século atrás. O mesmo aconteceu com a velha escola onde ele estudou. Durante algum tempo foi transformada em um escritório governamental; agora está vazia, em estado precário e sendo consumida pelo tempo.

O templo onde Buddhadasa foi ordenado, há muito tempo está abandonado; só o salão principal sobrevive. O velho Suan Mokkh, a aproximadamente 14km distante do atual, está reduzido a quase um terço de seu tamanho original. Alguns aldeões invadiram sua área e transformaram partes dela em lagoas de camarão. Pelo menos uma enorme e antiga árvore yang foi poupada. Segundo conta-se, neste lugar, certa vez Buddhadasa foi cumprimentado pelo Patriarca Supremo em exercício, um dos poucos monges seniores que expressamente prestou apoio ao monge de mentalidade progressista.

Onde se pode encontrar o verdadeiro espírito de Buddhadasa? O que ele quis dizer quando, frequentemente em seus últimos anos, falava “Buddhadasa ainda vive, nunca morrerá”? Surpreendentemente, Suan Mokkh passou, em grande medida, incólume através dos anos. É como se o monastério de floresta tivesse sido apanhado em uma cápsula do tempo. Ao passar pelo portão principal, onde nenhum carro é permitido, a pessoa deixa para trás o mundo alvoroçado das relações pessoais, a correria mesquinha e as excentricidades diárias da vida moderna. Lá, a calma e ressonante voz de Buddhadasa, em gravações de ensinamentos de Dharma, ainda pode ser ouvida, reproduzida para uma assembléia de monges e pessoas leigas que se congregam na área de pedra em forma de meia lua.

A elaborada estátua de Avalokiteshvara permanece imperturbada entre outras peças de estilo indiano, esculpidas por indicação de Buddhadasa após sua visita feita àquele país em 1955. O Salão de Entretenimento Espiritual, uma inovação sua, guarda sua coleção de pinturas Zen enigmáticas e outras saturadas com mensagens espirituais. Também imperturbado é o “Pavilhão da Rainha da Beleza” que ostenta três esqueletos: de uma vencedora do concurso de miss, o de um homem e de uma criança, e a Colina Phutthong com seu salão ao ar livre sem igual, onde “árvores servem como paredes, a terra como azulejos e o céu como um telhado”.

Um esforço tem sido feito para preservar as iniciativas do fundador tais como surgiram décadas atrás. O solitário coqueiro, na ilhota da famosa lagoa Nalike, é um bom exemplo. Phra Singthong Khemiko, o assistente particular de Buddhadasa, disse que a árvore atual foi plantada no lugar de suas predecessoras que haviam cumprido o seu tempo e morreram. Na bem conhecida canção de ninar que teria inspirado Buddhadasa a cavar a lagoa, o coqueiro solitário pode manter-se à distância, livre das “chuvas e trovões”, das intempéries da vida. A árvore é, assim, um símbolo para o nirvana, a terra da não-morte. Atingir realmente tal estado de libertação é outra questão.

Por outro lado, vale a pena examinar a habilidade da administração atual do Suan Mokkh para adaptar-se a novos contextos. Phra Singthong disse que Ajahn Pho, o abade, é notável por seu comportamento modesto. Ele continua levando uma vida moderada seguindo máxima de seu mestre: “Viver humildemente, agir com nobreza”. Ofertas dos devotos em dinheiro e outros objetos de valor, são firmemente rejeitadas. Desde o falecimento de Buddhadasa, Ajahn Pho recusa-se a ordenar qualquer novo monge.

Atualmente Suan Mokkh tem aproximadamente de 40 a 50 monges residentes, mas o número pode subir para 100 durante a “estação das chuvas buddhista”. De acordo com Phra Singthong, o abade empenha-se mais em “construir seres humanos do que monges” – a cada ano, milhares de membros da comunidade local e também estrangeiros, terminam os programas de retiro que ocorrem na outra parte de Suan Mokkh, do outro lado da estrada. E há novos esforços para estender a vida dos ensinamentos de Buddhadasa. Phra Manop Manito conduziu recentemente uma série de treinamentos intensivos de um mês de duração para jovens noviços.

Rapazes na adolescência foram recrutados, de áreas rurais e urbanas, para conviverem por um tempo e aprenderem a viver em harmonia e com respeito pela natureza. “Nós os chamamos Yuwa-Phutthatat [Jovens Buddhadasas]. Depois do programa, tomei conhecimento de vários casos notáveis de transformação. Alguns pais vieram me falar sobre como os seus filhos já não estavam mais viciados em jogos de computador, lanches e ar condicionado. Isso confirma minha fé de que o modo de vida do Senhor Buddha pode realmente transformar as pessoas. “Estou tentando dar seqüência a esse projeto para ver o que acontece a estes meninos durante o próximo ano, por quanto tempo conseguem resistir à concorrência do materialismo, à pressão dos amigos, e assim por diante”.

Em paralelo ao treinamento de noviços, houve um acampamento semelhante para moças realizado durante to o mês de abril. A dra. Sermsap Damrongrat tem dirigido o programa como um projeto especial para o Centro Dharma-Mata de Retiro para Mulheres, uma idéia acalentada em vida por Buddhadasa. “Você poderia dizer que é o último legado de Buddhadasa Bikkhu para nós”, disse Sermsap. “Ele gostaria de que as mulheres tivessem um lugar para a prática do Dharma, e colhessem os frutos do Buddhismo. Quando as mulheres têm Dharma, ele dizia freqüentemente, o mundo inteiro tem Dharma também “.

Os ensinamentos de Buddhadasa não estão restritos aos templos. Aroon Srisuwan, um funcionário aposentado do Parque Nacional de Khao Sok, disse que a escolha da floresta, feita por Buddhadasa, como lugar para depositar as suas cinzas, poderia ser considerada uma “bênção” para a vida local. A presença de relíquias respeitadas pelos aldeões de algum modo interrompeu a exploração invasora da área considerada uma das mais férteis no país inteiro agora. O velho homem ainda recorda do dia, 17 de outubro de 1993, quando as cinzas de Buddhadasa subiram as colinas de Khao Sok. Um grande número de habitantes locais, jovens e velhos, fervilhavam por toda parte ao longo do rio por onde passou a balsa cerimonial.

Cada um quis salvar alguma parte dos restos mortais do monge para adoração pessoal em casa. “Uma pessoa tentava conseguir um pedaço de osso”, Aroon disse. “Outros poucos conseguiram partes das cinzas. A maioria só coletou a água da corrente acreditando ser sagrada”. Mas o mais importante de tudo é o que ele nos ensinou: Ser auto-confiante, respeitar e aprender com a natureza, comer frugalmente, viver de forma simples. Eu mesmo mantive uma garrafa de água daquele dia, como uma lembrança de suas virtudes, um mestre cujos passos tento seguir.

© 2006 tradução de Jorge Luiz Ricardo Furtado, para a Comunidade Nalanda, https://buddhadasa.nalanda.org.br