O Eu é Pesado
Se entendermos nossos problemas clara e completamente, então seremos capazes de fazer algo em relação a eles. Precisamos, por esse motivo, dar a devida atenção a eles. Se olharmos cuidadosamente poderemos ver que existem dois tipos de vida: existe a vida pura, a parte essencial da vida; e existe um tipo de vida que tem algo extra, alguma coisa adicionada. Essa adição é o peso. Precisamos entender isso cuidadosamente e ver que existem esses dois tipos, pois a maioria de nós mistura e confunde as duas vidas. Quando falamos sobre a vida pura, uma vida na qual não há nada extra, estamos falando sobre nāma e rūpa, ou mente e corpo. Vida pura é apenas mente e corpo; isso é tudo que existe. Mas uma vida que é um entrave a si mesma tem algo adicionado; um terceiro elemento é adicionado à mente e ao corpo. Em pāli, isso é chamado de ‘attā’. Em português, podemos chamar de ‘eu’. Quando tomamos a vida pura da mente e do corpo e adicionamos um ‘eu’ a isso, então existe este ‘eu’ que pode sofrer. Esse é o componente extra que foi adicionado.
Adicionando ego – algumas pessoas chamam de ‘espírito’ ou ‘alma’ , esta ideia de que há uma substância eterna que faz de você ‘você’, que faz você um indivíduo especial, uma personalidade separada – é o que torna a vida um peso . Então, se você é sábio, você aprende a distinguir entre a vida pura da mente e do corpo, nada mais que a mente o corpo, e a opressão, a vida pesada onde você adicionou esta coisa chamada ego.
Muitas vezes, quando dizemos que não existe o eu, as pessoas ficam preocupadas ou com raiva. O apego e identificação a essa ideia é tão forte que elas realmente podem se tornar hostis em relação a nós se começamos a dizer que tal coisa não existe. Portanto, precisamos explicar isso um pouco para que vocês não fiquem com raiva de nós. A ideia de um eu é comum a todos. Seja do Oriente, seja do Ocidente, todos temos algum tipo de ideia e crença em um eu. Absolutamente cada um de nós. É uma ilusão fundamental que surge em todas as mentes humanas. Indianos, tailandeses, chineses, todo mundo anda por aí com esta ideia de um eu, uma alma, um Atman, ou o que quer que se queira chamá-lo.
Temos de olhar para isso e ver se realmente existe tal coisa. Como é que esta ideia de um ‘eu’ surgiu? O que acontece para que ela surja em crianças? Uma criança pode estar a andar, por exemplo, e esbarra numa cadeira. Machuca a perna e fica zangada. A criança, então, chuta a cadeira, talvez com muita força. A cadeira transformou-se numa pequena pessoa para a criança; a cadeira foi identificada como uma coisa individual, e foi-lhe dada uma personalidade. E, dado que a cadeira a atacou agressivamente, a criança reage com fúria. Esse é o resultado de não entendermos como as coisas são. A criança é ignorante a respeito da realidade da cadeira. A cadeira não tem personalidade e, então, é absolutamente ridículo ficar furioso com qualquer objeto inanimado. Mas, por causa da ignorância, de não se entender, a ilusão de um ‘eu’ surge, não apenas para com as cadeiras, mas para com o corpo e a mente — o ‘eu’ surge, o ‘eu’ que é diferente da cadeira.
Essa é uma ilusão fundamental constantemente sendo condicionada na mente humana, na mente de todos os seres sencientes. E está enraizada na ignorância. Essa ilusão, a ideia de ‘self’, está constantemente surgindo na mente. Essa ideia, ou sentimento, de que há um self, e que ele é real. O sentimento existe; nós o experimentamos constantemente. Conforme vocês me ouvem agora [ou leem isso agora], vocês estão provavelmente me transformando em uma alma; e vocês, espectadores [ou leitores], em outras almas. Essa ideia está constantemente surgindo. Essa ilusão é real, mas não há realidade por trás dessa ilusão. A ideia de que há um ‘eu’ ocorre. Mas não há mesmo! É apenas uma ilusão! E estamos trabalhando com todas essas ilusões, conferindo esta ‘alma’, esta ‘individualidade’, esta ‘personalidade’, para as coisas o tempo todo. Estamos constantemente fazendo isso por causa de nossa falta de compreensão. Essa ignorância realmente surge, mas o que nós pensamos que existe, ou seja, um ‘eu’, não existe. Porque essa ilusão fundamental é tão comum nas mentes dos seres sencientes, torna-se muito difícil para nós entendermos o que é dito quando se fala sobre esse assunto. Então, por favor, não fiquem com raiva ou frustrados, nervosos ou preocupados. Basta tentar entender o que está sendo dito. Coloquem a sua ‘alma’ de lado por um momento e pensem sobre as coisas claramente.
Essa ideia ou ilusão do ego é algo realmente enterrada profundamente na mente. Ela está presa lá dentro, e é muito difícil de erradicar por duas razões: uma delas é que surge espontânea e instintivamente, como no caso da criança que ficou irritada com a cadeira; e a outra é que é apoiada, nutrida e encorajada nas vidas de todos nós. À medida que aprendemos a nos relacionar com o mundo que nos rodeia quando somos bebês, somos ensinados por nossos pais, irmãos e irmãs de que isto sou ‘eu’, isto é ‘você’, isto é ‘meu’, isto é ‘nosso’. Somos ensinados a nos prender a coisas e a identificá-las como ‘eu’, ‘meu’ e como entidades separadas, desde o início. No topo da tendência instintiva para essa ilusão, somos penetrados por esse ideia vinda das pessoas que mais nos amam. Essa ideia ou sentimento, é, portanto, muito profunda; está presa lá com uma cola muito forte. Agora, alguns de vocês podem pensar que o que estamos falando é loucura. Podem estar balançando a cabeça e pensando que esses monges não sabem do que estão falando, mas nós os encorajamos a ouvir com muito cuidado, porque vamos dizer como é possível erradicar essa ilusão do eu, que é a causa do fardo da vida.
Todos nós temos medo de abandonar essa ideia de um ‘eu’. E quando falamos de desenraizá-lo, soa como se estivéssemos dizendo para que matem a si mesmos, para cometer suicídio. Isso mostra o quão grande é sua confusão e, portanto, eu os encorajo a terem um novo olhar sobre essa questão. Tentem colocar de lado todas as opiniões, preconceitos e ideias que tenham acerca de uma alma, um espírito, um ‘self’ – todos esses conceitos sobre ‘eu’ – o grande eu, o pequeno eu, o grande ‘self’, o pequeno ‘self’, qualquer coisa. Comece de novo. Tenha um novo olhar sobre o ‘self’. Venha para o tema como se fosse completamente novo, com uma clareza e mente clara que não está obscurecida por todos os velhos condicionamentos. Olhem para si mesmos frequentemente, e vejam o que realmente está lá. O que é esse eu? Não fiquem nervosos ou com medo. E não julguem tudo aquilo que está sendo dito. Abordem essa questão com uma mente completamente nova. Não pensem que o que estamos dizendo é que vocês têm que matar a si mesmo. Se entenderem nossas palavras desse modo, não estarão ouvindo. Não estamos sugerindo que matem a si mesmos ou destruam suas vidas. Não estamos dizendo que devem se desfazer da vida. O que estamos falando é sobre libertar a vida dessa ilusão de si mesmo.
O ‘self’ nem mesmo existe. É por isso que dizemos que ele é uma ilusão, uma fantasia, um mal-entendido. E queremos libertar a vida disso, porque esse é o fardo. Essa ilusão é algo extra; ela não existe. Então, matar essa ilusão não prejudica a vida nem um pouco. Na verdade, isso liberta a vida de toda a insatisfação, todo o dukkha. Essa é a forma de resolver todos os nossos problemas. Essa é a forma de lidar com todas as nossas frustrações, dores, sofrimentos, decepções, tristezas, preocupações e medos. A vida pura é apenas corpo e mente. Não existe alma, não existe o eu. Então, o que estamos falando não é sobre matar a si mesmo, mas libertar a vida desse fardo, dessa ilusão.
Agora, como a ilusão de um eu surge na mente que não tem um eu? O feto no útero materno não tem concepções ou ideias sobre um eu. Mas, então, há o nascimento. E os órgãos dos sentidos da criança começam a funcionar. Conforme esses órgãos dos sentidos recebem estímulos do ambiente, a criança começa a interagir com esse ambiente. Há uma experiência de gosto quando a criança se alimenta do seio de sua mãe. A boca experimenta o leite e gosta dele. O leite é saboroso, satisfaz, é atraente e a mente do bebê é atraída pelo sabor num sentido positivo. Isso é o sentimento prazeroso, vedanā prazeroso, que causa muitos problemas. O bebê tem prazer com o leite, satisfaz-se com ele. E, então, algum tipo de sentimento começa a surgir na mente infantil.
Pode não ser uma ideia intelectual, mas há o sentimento de um ‘eu’, o ‘eu’ que tem prazer, o ‘eu’ que está satisfeito, o ‘eu’ que gosta – ‘eu’ gosto! ‘Eu estou satisfeito!’ ‘Eu estou satisfeito!’ Este ‘eu’ surge na criança. Quando isso acontece muitas e muitas vezes com todos os tipos de experiências diferentes, já que ela é alimentada e apoiada por pais e outras pessoas, essa ideia cresce, a ideia de um ‘self’. No início, a ideia de um ‘eu’ só surge e passa, carregada de sentimentos diferentes, com o rótulo de sentimentos; mas como acontece muitas e muitas vezes, torna-se uma forma habitual de se relacionar com a vida. E assim, o ‘eu’ já não é algo temporário, mas cresce no que chamamos ponto de vista, um preconceito profundamente arraigado que prejudica a mente, que é teimosa e estreita. A mente é completamente absorvida na visão de que existe um eu. Então, dessa forma, a ilusão surge. E essa visão é agarrada tão fortemente que a mente não a desafia. A mente não vai ouvir a razão ou observar a situação com cuidado, porque se apega a essa visão com muita força. Essa visão se solidifica cada vez mais e mais, como a criança que cresce até se tornar num adulto, e não há nenhuma forma para que a verdade possa brilhar na situação. Então, é assim que a ideia, a ilusão de um eu, surge na mente do recém-nascido. E é assim que o eu que não existe, torna-se uma coisa real em nossas mentes. Não existe tal coisa como um eu, mas essa visão de um eu torna-se algo real. E, então, isso é um fardo da vida.
Assim, logo que este ‘eu’ surge, imediata e automaticamente segue-se o sentido de um ‘meu’. Primeiro vem a ilusão de um ‘eu’ e, depois, uma vez instalado, segue-se a ilusão de um ‘meu’. E do ‘meu’ surge a ilusão de ‘eu mesmo’. Há o ‘eu’, o sentido de possuir e depois há o ‘eu mesmo’- as coisas que nós possuímos, com as quais nos identificamos e às quais nos apegamos como ‘minhas’. A essas três coisas juntas chamamos de upādāna. Upādāna é uma palavra pāli que pode ser traduzida por ‘agarrar’, ‘segurar’ e ‘apegar-se’. Então, este apego ao ‘eu’ leva ao apego ao ‘meu’ e ao ‘a mim mesmo’.
E assim todos os tipos de coisas se tornam fardos para a mente. Este é o problema da vida. Nós não só aderimos às coisas agradáveis, é claro, como as experiências gratificantes, mas também as coisas desagradáveis – ‘eu’ sofro, ‘eu’ estou doente, ‘minha’ dor, ‘minha’ doença, ‘minha’ morte. E alguns de nós ficam tão empolgados com tudo isso que passamos inclusive a falar de ‘meu’ mundo. Aderimos ao mundo todo. Nós reivindicamos o todo como sendo ‘meu’. Essa é a forma como esse processo inteiro torna-se realmente uma carga e como o nosso orgulho e ego não conhecem limites nessa ilusão e aderem a tudo. Deem uma olhada nisso. Olhem claramente, sem quaisquer preconceitos e vejam se não é isso o que acontece.
E agora, o que vocês vão fazer com isso? Vocês precisam aprender a distinguir duas situações. Vocês devem perceber a diferença entre o momento em que a ilusão de ‘eu’ surge na mente, e quando não existe essa ilusão. Precisam ser capazes de observar a mente muito de perto, com uma grande fome, para ver isso, para distinguir duas condições – a condição da mente oprimida por essa ilusão, e a mente livre dessa ilusão. Essas duas condições devem ser discriminadas. Quando começarem a ver essas duas diferentes condições na mente, verão que a ilusão de ‘eu’ é muito pesada. E vocês verão que a ausência dessa ilusão deixa a mente muito leve.
Uma vez que começam a distinguir entre essas duas condições, então, serão capazes de ver como essa ilusão surge. Está sempre indo e vindo nas mentes dos seres sencientes. Vocês poderão ver e entender como essa ilusão aparece, de onde o ego vem. Poderão ver isso. Não precisarão acreditar em mim. Poderão ver por si mesmos. E uma vez que entendam de onde essa ilusão vem e como isso surge, então saberão o que fazer. Verão o que precisa ser feito para arrancar a raiz dessa ilusão. Mas precisam querer isso de verdade, porque isso é sutil e se não olharem com cuidado deixarão escapar, como têm deixado escapar por toda a sua vida.
“O Eu é Pesado” por Buddhadasa Bhikkhu, foi traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda com a permissão dos detentores do copyright.
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